O labor do processo, a sedução do resultado
texto de Mariana Machado
na ocasião da exposição Impressões do Movimento e Outros Actos Bárbaros
“Primeiramente, ser o trabalho externo ao trabalhador, não fazer parte da sua natureza, e por conseguinte, ele não se realizar no seu trabalho mas negar-se a si mesmo, ter um sentimento de sofrimento em vez de bem-estar, não desenvolver livremente as suas energias mentais e físicas mas ficar fisicamente exausto e mentalmente deprimido. O trabalhador, portanto, só se sente à vontade no seu tempo de folga, enquantot no trabalho se sente contrafeito.”
(Marx, K. Manuscritos Económico-Filosóficos)
Vídeo e fotografia – as imagens de algo por excelência, onde a sua condição inerente parece provir precisamente desta capacidade mediadora, de apresentar o que não está. O vídeo seria sempre o vídeo de algo ou alguém, substituiria o que lá não pode estar, apresentando-o como sendo ele. Ora, não será possível um novo olhar? Um que veja no vídeo de algo, ao invés desse algo, os químicos, os minerais e o labor necessários para que essas imagens apareçam diante de nós? As imagens passariam a ser as imagens disso – delas mesmas e do seu processo.
Em “A Sedução do Corpo com as Coisas”, de 2022, víamos objetos desenvolvidos pela artista e a forma como remetiam para um movimento, um contacto entre corpos, uma performatividade. Fossem chapas dobradas ou desenhos expostos, a sedução surgia pela articulação entre o resultado e a exposição do processo, sem desconexão ou existência independente, um só. Hoje, vemos aqui duas caixas de luz com ampliações de slides encontrados nas minas do Pejão; duas grandes fotografias impressas a jato com imagens de desporto praticado pelos mineiros; uma projeção sobre uma chapa de latão de slides de autocolantes políticos encontrados nos balneários; e uma montagem em vídeo projetada sobre um acrílico onde está impresso o still que acompanha o genérico de D’est de Chantal Akerman.
A associação entre resultado e processo aparece novamente, mas agora este é muito concreto, provém de uma profunda investigação nas minas do Pejão; o resultado é igualmente circunscrito, a imagem fotográfica e de vídeo. Alguém associaria, da mesma forma que associou às chapas de aço dobradas o ato da artista, às imagens que vê o processo aqui iluminado? Parece menos evidente, o objetivo parece diferente.
A entrada encontra-se iluminada por tons de laranja, o fogo ocupa todos os lugares. Um espaço assumidamente flamejante de onde surgem, por entre o magma, fotografias das minas encontradas nas mesmas. A representação que as ocupa, o processo mineiro, surge igualmente evidenciado nelas mesmas, nos seus rastros deixados pelo tempo, na sua decomposição, onde a sua dimensão concreta – esta fotografia - torna-se parte da fotografia em si e, deste modo, torna-se igualmente visível a sua dimensão processual. A fotografia deteriora-se porque inclui uma transformação material; esta transformação material inclui uma transformação laboral (e mineira).
Entrar na exposição torna-se, então, entrar numa mina, ou melhor, em duas que são uma: na mina do Pejão e na mina das imagens; que mesmo não sendo necessariamente a mesma remetem ao mesmo processo, ou melhor, à existência deste. A relação parece particularmente irónica, pois o vídeo é associado a um momento de lazer, a uma fuga do quotidiano que para o trabalhador mineiro representa precisamente o momento para si. Por outro lado, a própria produção de um vídeo é resultado de um trabalho de mineração, o primeiro trabalhador do cinema é esse mesmo trabalhador mineiro. As fotografias impressas contrastam neste sentido, vemos a promoção ao lazer por parte da entidade patronal, nas únicas imagens que não são provenientes de uma fonte luminosa.
Já na segunda sala, os slides são projetados numa chapa de latão e o vídeo num acrílico impresso. O movimento parece circular; assim como as peças apresentam as minas por surgirem literalmente representadas nelas – fotografadas, filmadas – estas ganham igualmente dimensão plástica na forma como as superfícies as recebem, sejam digitais ou analógicas. A chapa de latão remete de forma clara a uma condição mineralógica, superfície que interseta com os cacifos do balneário, e o still de D’est, em camadas, parece estratificar as imagens que recebe.
Associar o cinema à exploração mineira é difícil, fá-lo comportar um caráter contraditório onde este é ao mesmo tempo lazer e exploração. Daí a urgência por parte da artista de fazer ver este processo, estes “actos bárbaros”, as suas condições e, ao mesmo tempo, fazer vê-lo no próprio método de fazer ver. É uma circularidade contraditória em que o filme é ao mesmo tempo preservação da alienação do trabalhador e forma de a fazer ser vista. São impressões de movimentos, explícitos ou latentes, que tornam a exposição, mais do que um posicionamento, um levantamento, um movimento constante de descoberta e de onde brotam objetos, imagens, registos. Imagens do processo e imagens enquanto processo; imagens de minas e imagens mineradas. E como a artista já nos tinha mostrado, também o seu trabalho é resultado e processo.
texto de Mariana Machado
na ocasião da exposição Impressões do Movimento e Outros Actos Bárbaros
“Primeiramente, ser o trabalho externo ao trabalhador, não fazer parte da sua natureza, e por conseguinte, ele não se realizar no seu trabalho mas negar-se a si mesmo, ter um sentimento de sofrimento em vez de bem-estar, não desenvolver livremente as suas energias mentais e físicas mas ficar fisicamente exausto e mentalmente deprimido. O trabalhador, portanto, só se sente à vontade no seu tempo de folga, enquantot no trabalho se sente contrafeito.”
(Marx, K. Manuscritos Económico-Filosóficos)
Vídeo e fotografia – as imagens de algo por excelência, onde a sua condição inerente parece provir precisamente desta capacidade mediadora, de apresentar o que não está. O vídeo seria sempre o vídeo de algo ou alguém, substituiria o que lá não pode estar, apresentando-o como sendo ele. Ora, não será possível um novo olhar? Um que veja no vídeo de algo, ao invés desse algo, os químicos, os minerais e o labor necessários para que essas imagens apareçam diante de nós? As imagens passariam a ser as imagens disso – delas mesmas e do seu processo.
Em “A Sedução do Corpo com as Coisas”, de 2022, víamos objetos desenvolvidos pela artista e a forma como remetiam para um movimento, um contacto entre corpos, uma performatividade. Fossem chapas dobradas ou desenhos expostos, a sedução surgia pela articulação entre o resultado e a exposição do processo, sem desconexão ou existência independente, um só. Hoje, vemos aqui duas caixas de luz com ampliações de slides encontrados nas minas do Pejão; duas grandes fotografias impressas a jato com imagens de desporto praticado pelos mineiros; uma projeção sobre uma chapa de latão de slides de autocolantes políticos encontrados nos balneários; e uma montagem em vídeo projetada sobre um acrílico onde está impresso o still que acompanha o genérico de D’est de Chantal Akerman.
A associação entre resultado e processo aparece novamente, mas agora este é muito concreto, provém de uma profunda investigação nas minas do Pejão; o resultado é igualmente circunscrito, a imagem fotográfica e de vídeo. Alguém associaria, da mesma forma que associou às chapas de aço dobradas o ato da artista, às imagens que vê o processo aqui iluminado? Parece menos evidente, o objetivo parece diferente.
A entrada encontra-se iluminada por tons de laranja, o fogo ocupa todos os lugares. Um espaço assumidamente flamejante de onde surgem, por entre o magma, fotografias das minas encontradas nas mesmas. A representação que as ocupa, o processo mineiro, surge igualmente evidenciado nelas mesmas, nos seus rastros deixados pelo tempo, na sua decomposição, onde a sua dimensão concreta – esta fotografia - torna-se parte da fotografia em si e, deste modo, torna-se igualmente visível a sua dimensão processual. A fotografia deteriora-se porque inclui uma transformação material; esta transformação material inclui uma transformação laboral (e mineira).
Entrar na exposição torna-se, então, entrar numa mina, ou melhor, em duas que são uma: na mina do Pejão e na mina das imagens; que mesmo não sendo necessariamente a mesma remetem ao mesmo processo, ou melhor, à existência deste. A relação parece particularmente irónica, pois o vídeo é associado a um momento de lazer, a uma fuga do quotidiano que para o trabalhador mineiro representa precisamente o momento para si. Por outro lado, a própria produção de um vídeo é resultado de um trabalho de mineração, o primeiro trabalhador do cinema é esse mesmo trabalhador mineiro. As fotografias impressas contrastam neste sentido, vemos a promoção ao lazer por parte da entidade patronal, nas únicas imagens que não são provenientes de uma fonte luminosa.
Já na segunda sala, os slides são projetados numa chapa de latão e o vídeo num acrílico impresso. O movimento parece circular; assim como as peças apresentam as minas por surgirem literalmente representadas nelas – fotografadas, filmadas – estas ganham igualmente dimensão plástica na forma como as superfícies as recebem, sejam digitais ou analógicas. A chapa de latão remete de forma clara a uma condição mineralógica, superfície que interseta com os cacifos do balneário, e o still de D’est, em camadas, parece estratificar as imagens que recebe.
Associar o cinema à exploração mineira é difícil, fá-lo comportar um caráter contraditório onde este é ao mesmo tempo lazer e exploração. Daí a urgência por parte da artista de fazer ver este processo, estes “actos bárbaros”, as suas condições e, ao mesmo tempo, fazer vê-lo no próprio método de fazer ver. É uma circularidade contraditória em que o filme é ao mesmo tempo preservação da alienação do trabalhador e forma de a fazer ser vista. São impressões de movimentos, explícitos ou latentes, que tornam a exposição, mais do que um posicionamento, um levantamento, um movimento constante de descoberta e de onde brotam objetos, imagens, registos. Imagens do processo e imagens enquanto processo; imagens de minas e imagens mineradas. E como a artista já nos tinha mostrado, também o seu trabalho é resultado e processo.
The labor of the process, the seduction of the result
text by Mariana Machado
in the occasion of the exhibition Impressions of Movement and Other Barbaric Acts
Video and photography - the images of something par excellence, where their inherent condition seems to come precisely from this mediating capacity to present what isn't there. Video would always be the video of something or someone, it would replace what can't be there, presenting it as itself. But isn't a new way of looking possible? One that sees in the video of something, instead of that something, the chemicals, minerals and labor necessary for these images to appear before us? The images would become images of that - of themselves and their process.
In “A Sedução do Corpo com as Coisas”, from 2022, we saw objects developed by the artist and the way they referred to a movement, a contact between bodies, a performativity. Whether they were folded sheets or exposed drawings, the seduction arose from the articulation between the result and the exhibition of the process, without disconnection or independent existence, one and the same. Today, we see here two light boxes with enlargements of slides found in the Pejão mines; two large jet-printed photographs with images of sports practiced by the miners; a projection onto a brass plate of slides of political stickers found in the changing rooms; and a video montage projected onto an acrylic on which is printed the still that accompanies Chantal Akerman's D'est opening.
The association between result and process appears again, but now this one is very concrete, it comes from an in-depth investigation in the Pejão mines; the result is equally circumscribed, the photographic and video image. Would anyone associate, in the same way as they associated the bent steel sheets with the artist's act, the images they see with the process illuminated here? It seems less obvious, the objective seems different. The entrance is illuminated in shades of orange, and fire occupies every place. An openly flaming space from which, between the magma, photographs of the mines found in them emerge. The representation that occupies them, the mining process, also appears in them, in their traces left by time, in their decomposition, where their concrete dimension - this photograph - becomes part of the photograph itself and, in this way, its procedural dimension also becomes visible. The photograph deteriorates because it includes a material transformation; this material transformation includes a labor (and mining) transformation.
Entering the exhibition then becomes entering a mine, or rather, two mines that are one: the Pejão mine and the mine of the images; which, although they are not necessarily the same, refer to the same process, or rather, to its existence. The relationship seems particularly ironic, as the video is associated with a moment of leisure, an escape from everyday life, which for the miner represents precisely the moment for himself. On the other hand, the very production of a video is the result of mining work; the first worker in a movie is that same miner. The printed photographs contrast in this sense, we see the promotion of leisure by the employer in the only images that don't come from a light source.
In the second room, the slides are projected onto a brass plate and the video onto printed acrylic. The movement seems to be circular; just as the pieces present the mines because they literally appear represented in them - photographed, filmed - they also gain a plastic dimension in the way the surfaces receive them, whether digital or analog. The brass plate clearly refers to a mineralogical condition, a surface that intersects with the lockers in the bathhouse, and D'est's still, in layers, seems to stratify the images it receives.
It is difficult to associate cinema with mining, as it has a contradictory character where it is both leisure and exploitation. Hence the artist's urgency to make this process, these “barbaric acts” and their conditions visible and, at the same time, to make them visible in the very method of making them visible. It's a contradictory circularity in which the film is both a preservation of the worker's alienation and a way of making it seen. These are impressions of movements, explicit or latent, which make the exhibition, more than a positioning, a survey, a constant movement of discovery and from which objects, images, records spring. Images of the process and images as a process; images of mines and mined images. And as the artist has already shown us, her work is also a result and a process.
text by Mariana Machado
in the occasion of the exhibition Impressions of Movement and Other Barbaric Acts
“First, the fact that labor is external to the worker, i.e., it does not belong to his intrinsic nature; that in his work, therefore, he does not affirm himself but denies himself, does not feel content but unhappy, does not develop freely his physical and mental energy but mortifies his body and ruins his mind. The worker therefore only feels himself outside his work, and in his work feels outside himself. He feels at home when he is not working, and when he is working he does not feel at home.
(Marx, K. Economic and Philosophic Manuscripts of 1844)
(Marx, K. Economic and Philosophic Manuscripts of 1844)
Video and photography - the images of something par excellence, where their inherent condition seems to come precisely from this mediating capacity to present what isn't there. Video would always be the video of something or someone, it would replace what can't be there, presenting it as itself. But isn't a new way of looking possible? One that sees in the video of something, instead of that something, the chemicals, minerals and labor necessary for these images to appear before us? The images would become images of that - of themselves and their process.
In “A Sedução do Corpo com as Coisas”, from 2022, we saw objects developed by the artist and the way they referred to a movement, a contact between bodies, a performativity. Whether they were folded sheets or exposed drawings, the seduction arose from the articulation between the result and the exhibition of the process, without disconnection or independent existence, one and the same. Today, we see here two light boxes with enlargements of slides found in the Pejão mines; two large jet-printed photographs with images of sports practiced by the miners; a projection onto a brass plate of slides of political stickers found in the changing rooms; and a video montage projected onto an acrylic on which is printed the still that accompanies Chantal Akerman's D'est opening.
The association between result and process appears again, but now this one is very concrete, it comes from an in-depth investigation in the Pejão mines; the result is equally circumscribed, the photographic and video image. Would anyone associate, in the same way as they associated the bent steel sheets with the artist's act, the images they see with the process illuminated here? It seems less obvious, the objective seems different. The entrance is illuminated in shades of orange, and fire occupies every place. An openly flaming space from which, between the magma, photographs of the mines found in them emerge. The representation that occupies them, the mining process, also appears in them, in their traces left by time, in their decomposition, where their concrete dimension - this photograph - becomes part of the photograph itself and, in this way, its procedural dimension also becomes visible. The photograph deteriorates because it includes a material transformation; this material transformation includes a labor (and mining) transformation.
Entering the exhibition then becomes entering a mine, or rather, two mines that are one: the Pejão mine and the mine of the images; which, although they are not necessarily the same, refer to the same process, or rather, to its existence. The relationship seems particularly ironic, as the video is associated with a moment of leisure, an escape from everyday life, which for the miner represents precisely the moment for himself. On the other hand, the very production of a video is the result of mining work; the first worker in a movie is that same miner. The printed photographs contrast in this sense, we see the promotion of leisure by the employer in the only images that don't come from a light source.
In the second room, the slides are projected onto a brass plate and the video onto printed acrylic. The movement seems to be circular; just as the pieces present the mines because they literally appear represented in them - photographed, filmed - they also gain a plastic dimension in the way the surfaces receive them, whether digital or analog. The brass plate clearly refers to a mineralogical condition, a surface that intersects with the lockers in the bathhouse, and D'est's still, in layers, seems to stratify the images it receives.
It is difficult to associate cinema with mining, as it has a contradictory character where it is both leisure and exploitation. Hence the artist's urgency to make this process, these “barbaric acts” and their conditions visible and, at the same time, to make them visible in the very method of making them visible. It's a contradictory circularity in which the film is both a preservation of the worker's alienation and a way of making it seen. These are impressions of movements, explicit or latent, which make the exhibition, more than a positioning, a survey, a constant movement of discovery and from which objects, images, records spring. Images of the process and images as a process; images of mines and mined images. And as the artist has already shown us, her work is also a result and a process.