Contra-Ciclo: Imagens em Transe
“With a ciné-eye and a ciné-ear, I am a ciné Rouch in a state of ciné-trance in the process of ciné-filming. So that is the joy of filming, the ciné-pleasure. In order for this to work, the little god Dionysus must be there. We must have luck; we must have what I call ‘grace’”.[1]









Jean Eustache na sua última curta-metragem, de produção doméstica, filma a fotógrafa Alix Cléo Roubaud a descrever as suas fotografias ao filho adolescente do cineasta. Um princípio despojado que, através da assincronia entre imagem e som faz com que Alix, ao indicar uma fotografia onde se observa o reflexo de um corpo nu de uma mulher, afirme: “Isto é um pôr-do-sol em Fez”. É este momento-choque que inaugura o ciclo “Contra-Ciclo: Imagens em Transe”.
A primeira sessão apresenta-nos 5 curtas-metragens que, num ritmo contínuo e exigente, nos obriga a uma relação de resistência e de compromisso com as imagens em movimento. A primeira resistência é o retorno à fotografia, nomeadamente na substituição do registo durativo de uma ação e da acessibilidade de produção, conferindo-lhe uma qualidade tanto subjetiva como íntima. Como Alix refere “Une photographie peut etrê personnellement pornographique tout en étant publiquement décente”[2]. Se em Les Photos d’Alix a manipulação do discurso é conduzida por Jean Eustache, Agnès Varda, em Salut les Cubains (1963), recupera a reportagem desenvolvida quando viajou para Cuba no momento da Revolução de 1962 e reabilita o movimento dançante que testemunhou. O filme Drums from the Past (1971) de Jean Rouch estreia a mobilidade da câmara de filmar, revelando um duplo movimento centrado no outro, e da dependência da capacidade de alteridade do corpo que possui a câmara. É esta mobilidade que permite a Rouch participar no ritual de possessão da comunidade Songhay. É através da sua experiência na Nigéria que Rouch desenvolveu um modo de fazer singular:
“Thus instead of using the zoom, the cameraman-director can really get into the subject. Leading or following a dancer, priest, or craftsman, he is no longer himself, but a mechanical eye accompanied by an electronic ear. It is this strange state of transformation that takes place in the filmmaker that I have called, analogously to possession phenomena, “ciné-trance.”[3]
Nesta sequência o filme Revolução (1976) de Ana Hatherly resgata esta proximidade para o território nacional que capta, de forma implicada, as pinturas populares que cobriram as paredes de Portugal durante o período revolucionário de 1974-75 que auguravam a construção de um país anti-colonial e anti-imperialista. O último filme da sessão, Our trip to Africa (1966) de Peter Kubelka detona a ilusão da imagem fotográfica enquanto documento não-ideológico. Kubelka, na sequência da encomenda de um casal austríaco para filmar uma viagem de caça privada a África desenvolveu um filme tão meticuloso como violento onde a posição anti-colonial e anti-imperialista é visível no choque da montagem da imagem e do som. A segunda sessão apresenta 2 filmes: Les Maîtres Fous (1955) de Jean Rouch e Catembe (1965) de Faria de Almeida. O primeiro, que retoma a obra do cineasta Jean Rouch, consiste novamente na participação num ritual de possessão, onde, num registo menos performático por parte da câmara-corpo é possível identificar que este ritual é caracterizado pela apropriação de figuras de poder que o trabalhador pelo qual o ritual se principiou, vê-se subjugado no seu trabalho. Baudrillard salienta como no filme:
“os Negros que trabalham na cidade se juntam à noite na floresta para macaquearem e exorcizarem, numa espécie de transe, os seus senhores ocidentais: o patrão, o general, o motorista de autocarro. Não se trata de um acto político, mas de um acting-out sacrificial – a estigmatização da dominação com os próprios signos dessa dominação.” No entanto Baudrillard não interrompe a sua crítica e reenquadra-a “estes Brancos – o patrão, o general, o polícia, se não são já caricaturas de si mesmos, que se confundem com as suas máscaras. Os Brancos seriam carnavalizados, e, portanto, canibalizados, muito antes de tudo isto ter sido exportado para o mundo inteiro.”.
A exibição do filme Catembe (1965) de Faria de Almeida e as sequências que foram censuradas sublinham a qualidade agitadora do corpo que dança. As sequências que não incorporaram a versão final uma fez que foram visadas pela censura no período do Estado Novo retratam maioritariamente um salão de dança em Lourenço Marques (atual cidade de Maputo) em Moçambique. Na terceira e última sessão do ciclo é projetado o filme que inaugura o cinema moçambicano Mueda, Memória e Massacre (1979) de Ruy Guerra. Guerra filma a recriação da comunidade de Mueda do massacre de dia 16 de junho. Nesse dia em 1960, foi o primeiro momento onde a comunidade confrontou as autoridades imperialistas portuguesas exigindo a independência da sua Terra, que levou à morte pelas autoridades portuguesas das pessoas que se manifestarem, desde então a comunidade reúne-se e recria o massacre para que as gerações mais novas performem os movimentos de resistência da sua comunidade.
Este ciclo pretende questionar a capacidade direta e comunicante do cinema com as diferentes mudanças culturais e políticas sublinhando filmes que incorporam uma condição vital da Cultura: a continuidade por necessidade de um determinado ritmo ou gesto. É através desta necessidade que o movimento, mesmo em pantomina, se transforma em gesto. Por se relacionarem diretamente com o seu mundo estes filmes figuram um gesto intransitável, mesmo que produzidos num suporte passível de reprodução. Resgatando o pensamento de Agamben “o cinema não se trata de imagens, mas de gestos”. É através destes filmes, que se posicionaram em relação e no mundo, que este ciclo questiona a capacidade do cinema de se furtar à carnavalização e transgredir a sua qualidade tecnológica de reprodução e representação.
[1] Jean Rouch and Enrico Fulchignoni, “Cine-Anthropology”, 150.
[2] Uma fotografia pode ser pessoalmente pornográfica enquanto ainda é publicamente decente em Les Photos d’Alix (1980) de Jean Eustache (tradução livre)
[3] Jean Rouch, “The Camera and Man”, in Cine-Ethnography, ed. and trans. Steven Feld (Minneapolis: University of Minnesota Press, 2003), 38–9.
A primeira sessão apresenta-nos 5 curtas-metragens que, num ritmo contínuo e exigente, nos obriga a uma relação de resistência e de compromisso com as imagens em movimento. A primeira resistência é o retorno à fotografia, nomeadamente na substituição do registo durativo de uma ação e da acessibilidade de produção, conferindo-lhe uma qualidade tanto subjetiva como íntima. Como Alix refere “Une photographie peut etrê personnellement pornographique tout en étant publiquement décente”[2]. Se em Les Photos d’Alix a manipulação do discurso é conduzida por Jean Eustache, Agnès Varda, em Salut les Cubains (1963), recupera a reportagem desenvolvida quando viajou para Cuba no momento da Revolução de 1962 e reabilita o movimento dançante que testemunhou. O filme Drums from the Past (1971) de Jean Rouch estreia a mobilidade da câmara de filmar, revelando um duplo movimento centrado no outro, e da dependência da capacidade de alteridade do corpo que possui a câmara. É esta mobilidade que permite a Rouch participar no ritual de possessão da comunidade Songhay. É através da sua experiência na Nigéria que Rouch desenvolveu um modo de fazer singular:
“Thus instead of using the zoom, the cameraman-director can really get into the subject. Leading or following a dancer, priest, or craftsman, he is no longer himself, but a mechanical eye accompanied by an electronic ear. It is this strange state of transformation that takes place in the filmmaker that I have called, analogously to possession phenomena, “ciné-trance.”[3]
Nesta sequência o filme Revolução (1976) de Ana Hatherly resgata esta proximidade para o território nacional que capta, de forma implicada, as pinturas populares que cobriram as paredes de Portugal durante o período revolucionário de 1974-75 que auguravam a construção de um país anti-colonial e anti-imperialista. O último filme da sessão, Our trip to Africa (1966) de Peter Kubelka detona a ilusão da imagem fotográfica enquanto documento não-ideológico. Kubelka, na sequência da encomenda de um casal austríaco para filmar uma viagem de caça privada a África desenvolveu um filme tão meticuloso como violento onde a posição anti-colonial e anti-imperialista é visível no choque da montagem da imagem e do som. A segunda sessão apresenta 2 filmes: Les Maîtres Fous (1955) de Jean Rouch e Catembe (1965) de Faria de Almeida. O primeiro, que retoma a obra do cineasta Jean Rouch, consiste novamente na participação num ritual de possessão, onde, num registo menos performático por parte da câmara-corpo é possível identificar que este ritual é caracterizado pela apropriação de figuras de poder que o trabalhador pelo qual o ritual se principiou, vê-se subjugado no seu trabalho. Baudrillard salienta como no filme:
“os Negros que trabalham na cidade se juntam à noite na floresta para macaquearem e exorcizarem, numa espécie de transe, os seus senhores ocidentais: o patrão, o general, o motorista de autocarro. Não se trata de um acto político, mas de um acting-out sacrificial – a estigmatização da dominação com os próprios signos dessa dominação.” No entanto Baudrillard não interrompe a sua crítica e reenquadra-a “estes Brancos – o patrão, o general, o polícia, se não são já caricaturas de si mesmos, que se confundem com as suas máscaras. Os Brancos seriam carnavalizados, e, portanto, canibalizados, muito antes de tudo isto ter sido exportado para o mundo inteiro.”.
A exibição do filme Catembe (1965) de Faria de Almeida e as sequências que foram censuradas sublinham a qualidade agitadora do corpo que dança. As sequências que não incorporaram a versão final uma fez que foram visadas pela censura no período do Estado Novo retratam maioritariamente um salão de dança em Lourenço Marques (atual cidade de Maputo) em Moçambique. Na terceira e última sessão do ciclo é projetado o filme que inaugura o cinema moçambicano Mueda, Memória e Massacre (1979) de Ruy Guerra. Guerra filma a recriação da comunidade de Mueda do massacre de dia 16 de junho. Nesse dia em 1960, foi o primeiro momento onde a comunidade confrontou as autoridades imperialistas portuguesas exigindo a independência da sua Terra, que levou à morte pelas autoridades portuguesas das pessoas que se manifestarem, desde então a comunidade reúne-se e recria o massacre para que as gerações mais novas performem os movimentos de resistência da sua comunidade.
Este ciclo pretende questionar a capacidade direta e comunicante do cinema com as diferentes mudanças culturais e políticas sublinhando filmes que incorporam uma condição vital da Cultura: a continuidade por necessidade de um determinado ritmo ou gesto. É através desta necessidade que o movimento, mesmo em pantomina, se transforma em gesto. Por se relacionarem diretamente com o seu mundo estes filmes figuram um gesto intransitável, mesmo que produzidos num suporte passível de reprodução. Resgatando o pensamento de Agamben “o cinema não se trata de imagens, mas de gestos”. É através destes filmes, que se posicionaram em relação e no mundo, que este ciclo questiona a capacidade do cinema de se furtar à carnavalização e transgredir a sua qualidade tecnológica de reprodução e representação.
[1] Jean Rouch and Enrico Fulchignoni, “Cine-Anthropology”, 150.
[2] Uma fotografia pode ser pessoalmente pornográfica enquanto ainda é publicamente decente em Les Photos d’Alix (1980) de Jean Eustache (tradução livre)
[3] Jean Rouch, “The Camera and Man”, in Cine-Ethnography, ed. and trans. Steven Feld (Minneapolis: University of Minnesota Press, 2003), 38–9.